Chile, 50 anos do golpe: a luta contra um passado mal resolvido
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Chile, 50 anos do golpe: a luta contra um passado mal resolvido
Setembro 11, 2023
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Heranças da ditadura ainda assombram o paĂs no sĂ©culo 21
Porto Velho, RO - O grito de ordem - que em português pode ser traduzido como "nem perdão, nem esquecimento" - é ecoado há décadas por aqueles que buscam justiça contra torturadores, assassinos, mandantes e cúmplices da ditadura militar no Chile. Há exatos 50 anos, no dia 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas, lideradas pelo general Augusto Pinochet, deram um golpe de Estado, que encerrou o governo socialista e democrático de Salvador Allende.
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Pinochet (à esquerda) e Allende (à direita) durante cerimônia de nomeação de Pinochet como comandante-chefe do
Exército Foto: Biblioteca Nacional de Chile
O paĂs se juntava, entĂŁo, a outros vizinhos latino-americanos que estavam sob o controle de governos autoritários, como era o caso do prĂłprio Brasil desde 1964. Foram 17 anos atĂ© que o Chile voltasse a ter eleições presidenciais e as Forças Armadas deixassem o poder. Mas as heranças sombrias desse perĂodo continuam a se fazer presentes na sociedade chilena. Enquanto alguns lutam há dĂ©cadas para achar os corpos dos familiares desaparecidos na ditadura, ressurgem forças de extrema-direita e negacionismos, e o paĂs tĂŞm dificuldades para substituir uma Constituição criada no governo Pinochet vigente atĂ© hoje.
Relembrar o golpe e a ditadura, nesse contexto atual, Ă© um exercĂcio importante de memĂłria e de resistĂŞncia contra um passado que insiste em nĂŁo ir embora. Seja no Chile, no Brasil ou no restante do mundo.
Salvador Allende e Unidad Popular
Formado em medicina, Salvador Allende construiu uma carreira ativa na polĂtica. Integrou o Partido Socialista tĂŁo logo este foi fundado em 1933, deputado por ValparaĂso e Quillota e ocupou o cargo de ministro de SaĂşde, PrevidĂŞncia e AssistĂŞncia Social entre 1938 e 1941. A partir de 1945, se manteve no cargo de senador durante 25 anos. Durante esse perĂodo, concorreu Ă presidĂŞncia da RepĂşblica quatro vezes. Foi apenas na Ăşltima, em 1970, que conseguiu ser eleito.
Apoiado por uma coligação de partidos de esquerda chamada Unidad Popular, Allende teve 36% dos votos. Uma vitĂłria apertada em relação ao segundo colocado, Jorge Alessandri, da coligação de direita, com 34,9%; e 27,8% do terceiro, Radomiro Tomic. Pela primeira vez na histĂłria, um polĂtico socialista e marxista chegava ao governo de um paĂs por meio de votação popular. O projeto polĂtico ficou conhecido como a “experiĂŞncia chilena”, que significava a via democrática atĂ© o socialismo, sem uma ruptura revolucionária.
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Desfile da Unidad Popular– Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Apesar do começo promissor, o governo Allende teve que lidar com um paĂs ideologicamente polarizado, com um contexto internacional desfavorável de Guerra Fria e com as prĂłprias disputas internas da esquerda. Uma ala grande da Unidad Popular era favorável a seguir o caminho de Cuba, que em 1959 havia se tornado um paĂs socialista pela via armada.
“Principalmente no primeiro ano de governo, vai se criar uma sensação mais ou menos geral de bem-estar. As primeiras deliberações sĂŁo de elevação salarial, o que vai gerar um consumo desenfreado de bens duráveis e nĂŁo duráveis, especialmente domĂ©sticos. EntĂŁo isso faz com que haja uma sensação de bonança e apoio a um governo que se mostra exitoso.
Já no ano seguinte, começam os problemas com inflação, bloqueio norte-americano e isolamento do Chile em relação Ă social-democracia europeia, Ă UniĂŁo SoviĂ©tica e Ă China. Isso agrava os problemas econĂ´micos o governo começa a entrar em um movimento declinante”, diz o historiador Alberto Aggio, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Ele lançou em junho desse ano o livro 50 anos do Chile de Allende: Uma leitura crĂtica.
Crescia, dessa forma, a oposição interna ao governo e o apoio dos Estados Unidos Ă derrubada de Allende. No dia 11 de setembro de 1973, os militares decidem bombardear o Palacio de La Moneda, sede presidencial. Allende comete suicĂdio e tem inĂcio longos 17 anos de ditadura.
Pinochet e a ditadura
Augusto Pinochet era o Comandante do ExĂ©rcito do Chile quando aconteceu o golpe. Com o fim do governo Allende, uma Junta Militar assumiu o poder no paĂs. Pinochet foi nomeado Chefe Supremo da Nação em junho de 1974 e, em setembro, presidente da RepĂşblica. Posição em que se manteria atĂ© 1990.
A ditadura militar se caracterizou por destruir o sistema democrático, encerrar os partidos polĂticos, dissolver o Congresso Nacional, restringir o quanto pode os direitos civis e polĂticos e por violar direitos humanos básicos. No plano internacional, ficou marcada por integrar a Operação Condor, uma aliança entre ditaduras da AmĂ©rica do Sul para reprimir opositores polĂticos, e pelo alinhamento com os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria.
Apesar das semelhanças, as ditaduras chilena e argentina colecionaram tensões, principalmente por causa de conflitos sobre a delimitação de fronteiras. A disputa pelo Canal de Beagle, na PatagĂ´nia, quase levou os dois paĂses a uma guerra em 1978 e sĂł foi apaziguada por uma mediação do papa JoĂŁo Paulo II.
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Chile – 50 anos do Golpe – Foto: Biblioteca Nacional de Chile - Biblioteca Nacional de Chile
Para os que viveram a ditadura chilena, talvez nenhuma memĂłria seja mais traumática do que a constante violação de direitos humanos. RelatĂłrios oficiais dĂŁo conta de que mais de 40 mil pessoas foram vĂtimas dos militares, o que inclui torturados, mortos e desaparecidos. Os principais afetados foram polĂticos de esquerda, dirigentes sindicais, militantes e simpatizantes de partidos socialistas.
Por meio de uma base ideolĂłgica chamada de Doutrina de Segurança Nacional, trĂŞs ĂłrgĂŁos de Estado colocaram em prática o projeto de destruição dos que consideravam inimigos do regime: Forças Armadas, Carabineros de Chile e PolĂcia de Investigações.
Outros departamentos foram criados especialmente para a repressão: Dirección de Inteligencia Nacional (DINA, 1974-1977), Comando Conjunto (1975-1977) e Central Nacional de Informaciones (CNI, 1977-1990, sucessora da DINA). Uma série de lugares foi transformada em centros de tortura ou campos de concentração, como o Estadio Nacional (1973), Estadio Chile (1973), o navio-escola Esmeralda (1973), Academia de Guerra Aérea (1973-1975) e a Isla Quriquina (1973-1975).
O fotojornalista brasileiro Evandro Teixeira foi enviado, pelo Jornal do Brasil, ao Chile em 1973 para cobrir o golpe militar e lembra de um ambiente permanentemente hostil. Mesmo sob constante vigilância, ele conseguiu registrar o tratamento violento contra presos polĂticos no Estádio Nacional e ser o primeiro a fotografar Pablo Neruda morto, ainda no hospital. O poeta chileno foi vĂtima de envenenamento, segundo resultado de uma perĂcia internacional feita em 2023.
Mas foi um acontecimento, em tese mais simples do que os anteriores, que levou Evandro a passar uma noite na prisĂŁo.
"Faltava carne de vaca para a população, que só comia galinha e porco. Eu estava andando pela cidade e passei em frente ao Ministério da Defesa. Vi um carro de açougueiro parado e um cidadão entrar com um boi inteiro nas costas para o pessoal do quartel. Achei uma sacanagem e fiz a foto", lembra Evandro.
"Não olhei para trás. Tinha uma patrulha passando e me levou preso. Eu tive de tentar enrolar o capitão que me interrogou, fingir que tinha tirado a foto por acaso e dizer que eu era contra os comunistas. Como tinha um toque de recolher todo dia a partir das 18 horas, passei a noite lá, com medo de ser fuzilado na rua, e ele me liberou no dia seguinte".
Chicago Boys e Neoliberalismo
Assim que tomaram o governo, os militares decidiram implementar um conjunto de medidas para abrir a economia chilena ao capital privado e estrangeiro. Eles entendiam que o Estado deveria diminuir sua participação em alguns setores. Adotou-se, principalmente entre 1974 e 1982, de forma ortodoxa, os postulados neoliberais dos Chicago boys. Foram chamados assim os economistas chilenos que seguiram os estudos de pĂłs-graduação na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e, ao regressarem, passaram a influenciar as polĂticas econĂ´micas do Chile centradas em privatizações, redução do gasto pĂşblico, abertura ao mercado externo e reforma trabalhista.
Indicadores macroeconĂ´micos, como o Produto Interno Bruto (PIB), tiveram variação positiva na maior parte do tempo em que durou a ditadura. Mas as classes altas foram as principais beneficiadas. NĂŁo houve distribuição de renda e a desigualdade social foi uma das marcas desse perĂodo. Somaram-se a isso Ăndices altos de desemprego, diminuição de salários, aposentadorias e quebras de empresas.
Movimentos sociais e redemocratização
Uma nova Constituição nacional foi aprovada em 1980, por meio da qual Pinochet estendia em pelo menos mais oito anos o cargo de presidente. Mesmo diante desse reforço de poder, do crescente autoritarismo e dos mecanismos de repressĂŁo, os movimentos de oposição conseguiram se reorganizar durante a ditadura militar. Os primeiros dez anos da ditadura sĂŁo conhecidos por dificuldades maiores de mobilização. Mas a partir de 1983, uma sĂ©rie de protestos começou a tomar conta do paĂs.
“É preciso destacar a reorganização subterrânea levada a cabo por variados e distintos atores sociais e instituições. Entre eles, integrantes de alas da Igreja CatĂłlica; movimentos por direitos humanos, com articulações no exterior; as universidades e a ação dos estudantes para retomar as organizações estudantis; alĂ©m de uma rede solidária e polĂtica constituĂda no interior dos bairros perifĂ©ricos de Santiago. Esses Ăşltimos lugares dariam aos protestos muitos de seus atores, como os jovens desempregados, sem perspectiva e sob vigilância violenta”, diz a historiadora Fernanda Fredrigo, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Diante da pressĂŁo social crescente, a ditadura se viu obrigada a convocar um plebiscito em 1988, para que a população decidisse sobre a continuidade do regime militar. Mesmo que nĂŁo tenham sido apresentados prazos concretos para isso, o processo teve adesĂŁo grande da população, com mais de 92% dos habilitados para votar indo Ă s urnas. As opções eram o “Sim” pela continuidade e o “NĂŁo” pelo tĂ©rmino do regime. O “NĂŁo” venceu. Em 1989, foram realizadas as primeiras eleições presidenciais. O vencedor foi o candidato da coligação ConcertaciĂłn, o democrata cristĂŁo Patricio Aylwin AzĂłcar.
“As mobilizações sociais foram fundamentais na superação do medo, o que nĂŁo Ă© pouco; no abalo da crença quanto Ă despolitização total da sociedade; na retomada da ação polĂtica conjunta, fazendo emergir grupos polĂticos num contexto em que as agremiações pareciam apenas fragmentadas; na experiĂŞncia de 'unidade' da esquerda; na reinvenção das formas de luta cotidianas; e na associação das diferentes formas de luta: greves, paralisações, trabalho lento”, analisa Fernanda Fredrigo.
A democracia estava de volta em 1990, mesmo que sob profundos questionamentos. Afinal, Augusto Pinochet deixara a presidĂŞncia, mas continuava como lĂder das Forças Armadas. Em 1998, voltaria Ă polĂtica oficial para assumir o posto de senador vitalĂcio. No mesmo ano, seria detido durante uma viagem a Londres para tratamento mĂ©dico. Sobre ele pesava um mandado de busca e apreensĂŁo, e pedido de extradição para a Espanha, onde era acusado por violação aos direitos humanos. Ficou mais de 500 dias em prisĂŁo domiciliar, mas contou com a ajuda do governo britânico, que o extraditou de volta para o Chile.
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População comemora a vitĂłria do "NĂŁo" para permanĂŞncia da ditadura – Foto: Biblioteca Nacional de Chile
Em 2002, renunciou ao cargo de senador vitalĂcio. Em 2004, investigações no Senado dos Estados Unidos apontaram que ele tinha contas secretas fora do Chile, no valor de quase US$ 30 milhões, frutos de corrupção enquanto era ditador. Pinochet morreu em 2006, sem nunca ter sido julgado oficialmente pelos crimes que cometeu.
Questões mal resolvidas do passado
Durante quatro mandatos, de 1990 a 2010, a coligação ConcertaciĂłn dominou a presidĂŞncia do Chile. Nos trĂŞs primeiros, foi mantido o modelo neoliberal de economia. E apesar de terem dado ĂŞnfase nesse perĂodo aos gastos pĂşblicos nas áreas sociais e terem conseguido taxas altas de crescimento econĂ´mico, os governos nĂŁo conseguiram resolver os problemas histĂłricos de distribuição de renda.
Entre 2006 e 2022, o paĂs alternou entre as presidĂŞncias da socialista Michelle Bachelet e do direitista Sebastián Piñera. No perĂodo, destacam-se a “Revolução dos Pinguins”, em maio de 2006, o maior protesto de estudantes da histĂłria do paĂs, com mais de 600 mil pessoas exigindo reformas educacionais. E os protestos de outubro de 2019, cujo estopim foi o reajuste de passagens do transporte pĂşblico, e que envolveram mais de um milhĂŁo de pessoas. O resultado foi a convocação de um plebiscito em 2020, em que 78,27% dos votos decidiram pela criação de uma nova Constituição.
Em 2021, Gabriel Boric, do partido de esquerda ConvergĂŞncia Social, venceu as eleições presidenciais e iniciou o mandato em 2022. Para os defensores de um paĂs mais progressista e comprometido com a igualdade social, a eleição representou um momento de esperança. Para alguns analistas, Boric se tornou sĂmbolo de um modelo de renovação para as forças de esquerda.
“Boric Ă© uma figura importante para a esquerda mundial. O Chile Ă© um paĂs pequeno, mas que sempre teve uma posição distinta. A esquerda, em lugares como a Nicarágua ou a Venezuela, Ă© completamente anacrĂ´nica: sĂł tem um ponto de apoio que Ă© a China. Em outros casos, a esquerda democrática está na polĂtica latino-americana e pode ser dito que ele Ă© progressista. Mas precisa avançar do ponto de vista das relações sociais e culturais, porque mantĂ©m alguns vĂcios conservadores”, analisa o historiador Alberto Aggio.
Em setembro do ano passado, o texto da nova Constituição, considerada progressista, foi votado e rejeitado por 62% da população. O que colocou o paĂs em um novo impasse: ao se manter preso em normas e direitos definidos em 1980 na ditadura militar, nĂŁo resolve entraves histĂłricos que bloqueiam o desenvolvimento social. Simbolicamente, tambĂ©m nĂŁo consegue dar um passo importante para enterrar os vestĂgios da ditadura que assolou o paĂs durante 17 anos.
Fonte: AG/BR
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